Que mundo é esse?

Este é um dos dois contos com que participei do I Concurso de
Contos da Associação Brasileira de Psiquiatria em 2014.

A manhã de sexta-feira estava diferente para o senhor Lauro S.


Quando Lauro chegou para sentar à mesa do café, encontrou a esposa que fez questão de se
atrasar em seu café matinal. Eles sempre sentavam um de frente para o outro, mas em horários
diferentes. Quando ele se acomodava para degustar o café, ela se adiantava para chegar cedo
ao trabalho. A gangorra dos corpos deu uma trégua naquela manhã, e eles sentaram
simultaneamente, sem que a sentada de um fosse a debandada natural do outro. Lauro
encontrou a mesa posta, a mulher e a filha. Ele entrou no ambiente como se nada tivesse
acontecido, nem supunha que tivesse causado uma enorme estranheza em seus familiares na
tarde do dia anterior. E realmente não tinha, ao menos ele não percebia a confusão que tinha
causado.


Lauro, 58 anos, pai de uma menina de 17, casado com Marta há 32 anos, marido exemplar,
tranquilo, colocou toda uma vida, uma história a perder ontem, quando minutos antes de
chegar à estação do metrô São Joaquim, começou, no horário de pico, metrô lotado, a se
esfregar numa moça desconhecida de 19 anos dentro do vagão.
Aproveitando o aperto do metrô, começou a encostar o seu genital sobre o traseiro da menina
de costas para ele, flexionou os joelhos, em pé, e passou a fazer balanços com a pelve,
exibindo grande excitação. Duas horas depois, a esposa foi chamada na delegacia. Ele alegou
que não tinha acontecido nada demais, apenas tinha ficado “animado” com a moreninha que
lembrava a cunhada dele, “exatamente como ela era há trinta anos”.
Marta voltou dirigindo. Carregava um outro homem no carro, irreconhecível. Lauro sempre
foi um parceiro incomparável, paulistano sério, responsável. Conheceram-se no campus da
USP. Ele era estudante de Economia. Ela mudou-se de Recife para a capital paulistana aos
dezoito anos para cursar Sociologia. Lauro tinha interesse por Karl Marx. Marta era
contempladora de Gilberto Freyre. A afinidade intelectual do casal foi substituída por duas
mãos faceiras que desfilavam coladas pela cidade universitária até ser concluída na nave da
igreja do Largo São Francisco. Marta foi criada pela mãe, perdera o pai muito cedo. Treinou
com Lauro uma cumplicidade que o pai não teve tempo de usar.


Montaram uma família. Tiveram muita dificuldade para engravidar. Marta fez tratamento por
15 anos, tentando desde inseminação artificial até fertilização in vitro. Quando desistiram de
engravidar, Marta apareceu grávida em quatro meses. Lauro trabalhou árduo no início da
carreira para financiar os estudos acadêmicos da mulher que virou professora. Ela sempre
reconheceu os esforços dele para realizar o sonho da companheira em alcançar os mais altos
graus acadêmicos. Percorridos longos anos de terra da garoa, a esposa aguardava a
aposentadoria em dois anos. Com entusiasmo. Eles iriam embora para a cidade natal dela, e
Marta veria os dias restantes na Recife que tinha deixado para trás. Lauro, mesmo aposentado
do funcionalismo público, continuava trabalhando com a intenção de guardar uma boa grana
com o intuito de mudarem para a capital pernambucana, além de fazer uma poupança para a
faculdade da filha. Luísa queria ser arquiteta. Cresceu vidrada nos monólogos extensos da
mãe a falar sobre as pontes de Recife, os velhos teatros, os azulejos, os sobrados portugueses
com janelas amplas e discretas sacadinhas de ferro.


Ainda no regresso para casa, Marta tentava compreender o que teria acontecido com o homem
de uma vida. Ele era corretor de imóveis e o decrescente dinheiro que aportava ao lar
sinalizava o prejuízo nas vendas. Os imóveis tinham subido além da conta nos últimos cinco
anos, atingindo um patamar tão alto que ficava difícil efetuar qualquer venda. Ela estava
assustada, com raiva, mas precisava encontrar uma explicação. Não podia ser por acaso. Ela
não podia jogar fora uma existência construída, um projeto que deu certo até aquele instante,
devido a segundos de distração do marido. Distração? Ele sabia o que estava fazendo, mas
esse não era o homem que ela conhecia há mais de trinta anos. “É a neurose urbana, tentou
defendê-lo numa racionalidade, acorda cedo, enfrenta trânsito, queda nos negócios.”
As expectativas da mulher e da filha foram frustradas na mesa de café daquela insólita sexta-feira. Em qualquer outro momento, ele estaria constrangido, envergonhado, pedindo
desculpas. O que estaria passando na cabeça de Luísa, que sempre teve seu pai como ídolo,
tão apegada ao pai? A perplexidade se manifestava na dificuldade de Luísa levantar a cabeça,
na única lágrima de Marta enxugada com a ponta da toalha, a exigência de respostas naquele
concílio. Lauro estava indiferente a tudo, como se fosse um dia vulgar, que se repete nos
gestos automáticos de quem toma café apressado para ir a uma reunião, exceto pela
quantidade exagerada de açúcar que ele pôs na xícara.


O telefone toca quando Lauro já estava próximo à porta de saída, e ele atende. É a mulher da
NET TV a cabo. Ela ligou para oferecer um novo pacote. Ele começa a falar com ela de um
jeito galanteador, insinuando que deseja conhecer os serviços dela, pergunta se é casada, se
usa botas vermelhas. Marta não acreditava no que escutava. Que algo esquisito tivesse
acontecido no metrô, precisava de maiores esclarecimentos, mas ele “passar uma cantada” na
moça do telemarketing na frente da esposa e da filha, não fazia sentido. Ele não se comportou
no telefone como se quisesse provocar ou ofender a esposa. Ele parecia tão genuíno. Ao sair,
Luísa contou para a mãe que ela estava tentando esconder, mas tinha presenciado um episódio
semelhante ao atual há seis meses quando uma funcionária do Banco do Brasil telefonou para
a residência, e Lauro respondeu ao telefone dizendo que tinha vinte e cinco anos, que tinha
um vigor de um adolescente de 19 anos, era engenheiro, falava chinês, e convidou a mulher
do outro lado da linha para jantar fora. Jantar fora? Ele não frequentava o cinema há séculos,
nunca gostou de engenharia e jamais falou uma palavra de chinês.


Marta nem conseguiu trabalhar direito nessa manhã. Precisava de sossego para digerir a
violência dos acontecimentos. Saiu do prédio da Fundação Escola de Sociologia e Política,
atravessou a rua General Jardim e sentou-se na praça Rotary. Ela já tinha ouvido falar que é
comum os homens virarem adolescentes quando seus filhos alcançam a juventude. Essa é a
época quando os casais mais se separam. Filho é o que mais marca a cadência do tempo.
Filhos sinalizam aos seus pais que o tempo está correndo, que a morte está se aproximando.
Deve ser difícil para um marido se ver refletido no rosto da esposa. Ela denuncia o tempo que
vai embora. Ambos caminham juntos para um final da existência. Uma das maneiras de negar
essa evolução é namorar uma mulher bem mais nova, onde a concretude das rugas estão
ausentes. Pronto. Está negada a finitude. Os homens se protegem com a eterna fantasia da
imortalidade. Marta era socióloga e sempre tentou entender o ser humano inserido no
contexto social. Gostava também de Psicologia. Ela própria foi analisada durante anos pelo
doutor Samuel Grinberg.


Nos dias seguintes, Marta pediu o adiantamento das férias e ficou um mês em casa. Fazia
tantos anos que ela não sabia o significado de um descanso remunerado. Saía de casa cedo
voltava tarde, preparava o jantar, conversava rápido com a filha e o marido, ajeitava a aula do
dia seguinte. Ao conseguir chegar cada vez mais tarde à mesa do café, Marta notou que o
marido parecia desligado do mundo, embora mantinha a gravata no pescoço e chocolates na
pasta de trabalho. Como ela não percebera antes? Com o excesso de tarefas, obrigada a
corrigir teses de alunos, tinha parado de reparar nos pequenos detalhes. Seria o episódio do
metrô um sinal de que ela precisava cuidar melhor da casa? A convivência poderia trazer uma
nova paz. Tirou a primeira semana para arrumar a casa. Sentiu vontade de ir ao cinema no
domingo, sair para dançar quem sabe, rever os amigos antigos. O afastamento da vida social
foi um alerta. Era Lauro quem sempre a incentivava para outros lugares, mas há quanto tempo
que ele não lhe fazia um convite? Ela usava os finais de semana para corrigir as provas e
repousar o corpo, não vinha se importando com a falta desse mundo fora de casa. Talvez nem
tivessem dinheiro para esses pequenos recreios. A quantidade de dinheiro que ele despejava
no lar também reduzia mês a mês ao longo de séculos, mas no último mês pareceu ser ainda
menor. Seria por isso que o Banco do Brasil ligava tanto para o marido? Fez empréstimo
consignado?


Na segunda-feira da outra semana, Marta poderia ter ido ao banco, entretanto foi ao emprego
de Lauro falar com o chefe. Foi informada do retraimento progressivo do senhor S. e de uma
queda drástica no seu potencial de vendas. Era verdade que os negócios tendiam a uma
desaceleração, havia muito apartamento usado em estoque, mas Lauro produzia bem abaixo
dos colegas e menos do que o habitual dele há dois anos. Marta voltou para a casa. Sentiu
vontade de ligar para a mãe dela, porém a mãe fora enterrada há anos. Dias depois, Lauro
agrediu fisicamente um passageiro no metrô que se esbarrou nele. Não restavam dúvidas de
que era o momento de levar o seu parceiro urgente ao médico. Ele era resistente a buscar
ajuda, mas dessa vez iria.


O casal me procurou no consultório. O que mais me chamou a atenção nessa história foi a
alteração de personalidade e a ausência de antecedentes de doença mental de seu Lauro. Ele
não tinha também nenhum relato de doença psiquiátrica na família. Sempre quando estamos
diante de um paciente que começa a apresentar mudança de comportamento tardiamente, após
os 50 anos, é importante começar a investigar se existe alguma causa orgânica, isto é, se
existe alguma coisa errada em um órgão ou sistema do corpo desencadeando a perturbação
mental. Um paciente pode chegar ao médico com queixa de cansaço, desânimo, lentificação,
tristeza e receber o diagnóstico de depressão, sendo que uma anemia produz sintomas
idênticos. Supor diretamente que se trata de uma doença mental “pura” é correr o risco de não
tratar adequadamente se houver outra enfermidade por trás. Pensem, por exemplo, o que
aconteceria se eu iniciasse já a psicoterapia em Lauro e descobrisse, apenas no progredir da
doença, que ele possuía um tumor cerebral? Na verdade, causa orgânica deve ser a primeira
coisa a ser investigada em qualquer idade, principalmente em pessoas mais maduras que
nunca tiveram qualquer antecedente psiquiátrico.


Ao examinar o paciente, o que mais saltou aos meus olhos foi a presença de um discreto
reflexo primitivo que, ao coçara base da palma da mão com uma chave, os músculos do
queixo se movem, como se fosse um focinho. É normal apenas em recém-nascidos até os dois
meses de idade. No adulto, a presença desse reflexo remete a um comprometimento na parte
da frente do cérebro. Essa região, conhecida como lobo frontal, é responsável pelo controle
dos impulsos, crítica, julgamento e planejamento. O paciente também apresentava o reflexo
patelar mais exaltado. Reflexo patelar é aquele onde se martela abaixo do joelho, e o paciente
responde chutando a perna. Esse reflexo exacerbado pode representar lesão frontal, quadros
ansiosos ou uso de certas medicações.


Os testes de perseveração, que eu gosto de chamar de persistência, estavam bem
comprometidos. Um exemplo desse teste é ordenar ao paciente que ele bata palmas três vezes.
Lauro batia palmas 5 vezes. O teste de perseveração alterado e o aumento do reflexo patelar
são devidos a uma perda de controle inibitório, uma função do lobo frontal.
Desenhei um círculo e solicitei a Lauro que colocasse os números do relógio e ajeitasse os
ponteiros às 2 horas e 45 minutos. Marta não acreditou no que ela estava vendo. Os números
foram todos agrupados no canto superior direito do relógio, e os ponteiros foram colocados
fora do círculo. Por fim, apliquei alguns testes de memória que estavam preservados.
Marta saiu da consulta esperançosa. Lauro estava doente. É inegável que toda doença tem
tratamento. O casamento voltaria a ter gosto de ano sabático.


Os dias seguintes não foram fáceis, devido à oposição de Lauro em fazer a ressonância
magnética de crânio. Ele até concordou em fazer os exames de sangue, pois comia muito doce
e poderia estar com diabetes. Uma ressonância magnética da cabeça? Tentou ser doutor de si
mesmo, justificando que não era necessário se aprofundar tanto, que ele não tinha nada.
Lauro, após muita pressão familiar, cedeu à resistência por um único motivo: provar para a
mulher e a filha que ele não estava louco.


Duas semanas depois, retornaram ao meu consultório com os exames prontos. Exames
laboratoriais todos normais, inclusive a taxa de glicose no sangue. A ressonância magnética
de crânio evidenciava uma atrofia muito concentrada no lobo frontal, estendendo-se em
menor grau para a porção anterior do lobo temporal. Essa atrofia representa uma morte dos
neurônios, o que explica todo o quadro clínico de Lauro.


Lauro era portador de demência frontotemporal que equivale a 5% das demências e costuma
se apresentar mais cedo em comparação com as outras, em geral antes dos 60 anos de idade.
Existem vários tipos de demências, a mais conhecida é a doença de Alzheimer que
corresponde à metade das estatísticas. Demência é uma doença onde acontece um declínio das
habilidades que nos permitem entrar em contato e conhecer o mundo, tais como atenção,
orientação, linguagem, memória, planejamento, raciocínio e julgamento. A maioria das
pessoas acha que para ter demência é obrigatória a falha da memória. A perda de memória é
essencial apenas para o diagnóstico de Alzheimer. A característica comum a todas as
demências é a disfunção executiva, ou seja, os pacientes reduzem a capacidade de executar as
atividades do dia a dia, prejudicando o seu cotidiano. No caso de Lauro, ele não conseguia
manter sua atividade na corretora, reduzindo o capital que entrava em casa.


Marta sentiu culpa, porque não queria contar para o companheiro sobre a evolução da doença
que eu falei para ela. Marta chorava escondida no banheiro da faculdade. Eu também fiquei
numa situação delicada. Eu disse para o paciente que ele tinha um problema no cérebro que
iria aos poucos causando prejuízos na capacidade dele executar as tarefas do dia a dia, mas
que ele ficasse tranquilo, pois eu iria acompanhá-lo de perto. Eu não menti, mas não confessei
toda a verdade, que era uma doença com uma evolução sombria, progressiva e que a
tendência era que ele ficasse cada vez mais alheio ao mundo, com um comportamento
imprevisível, variando desde extremos de agitação, perda de interação social, até um
desinteresse por tudo. A demência frontal ainda não tem cura. É uma doença degenerativa,
onde um número cada vez maior de neurônios vai perdendo a sua função. Os tratamentos são
paliativos, visando tratar as alterações comportamentais, tais como depressão, euforia,
desinibição, agitação, em alguns casos delírios e até alucinações. Marta passou a ser flagrada
sentada nos degraus da faculdade, com um semblante mais regredido. Quis se proteger do
grau de mistura. Era o marido quem estava regredindo, não ela. Ela já tinha entendido que era
parte da doença mental o próprio paciente não ter crítica em relação ao que se passava com
ele. Sentiu constrangimento por arrancar do marido o direito à verdade. Na Inglaterra, foi feito
um estudo em que a maioria dos filhos declarou que gostaria de ser informado se tivesse
demência. Esses mesmos filhos não gostariam que a verdade fosse contada a seus pais se um
desses genitores desenvolvesse demência.


No retorno à consulta, Marta contou-me que Lauro tinha sido demitido do emprego, porque
ficava impaciente e não conseguia mais manter as estratégias de vendas que ele sempre soube
articular tão bem no contato com os fregueses, e todos perceberam claramente àquela altura
que ele estava com algum problema. Marta estava preocupada com o excesso não apenas de
doces que Lauro comia, mas também o quanto ele, um homem comedido, tinha se tornado um
verdadeiro glutão, uma espécie de Dom João VI. O peso dele aumentava a cada dia na
balança de casa.


É comum os pacientes com demência frontal apresentarem o que se chama “perversão do
apetite”. Eles podem tanto alterar a sua preferência para outros tipos de alimentos quanto
começar a ingerir de maneira exagerada, sendo notória uma predileção por doces, mesmo em
pessoas sem o hábito prévio de comer açúcar. A demência frontal está muito ligada a uma
regressão oral, onde a exemplo da mais remota infância, os prazeres passam a se concentrar
na boca.


Vários dos meus pacientes, tal como Lauro, apresentavam alteração de hábito alimentar,
resgatando a primazia da boca, entretanto um caso em particular me chamou a atenção.
Tratava-se de uma senhora de 65 anos, J.M.F., que atendi no sistema público de saúde, no
Centro de Atenção Psicossocial para Álcool e Drogas (CAPS). A senhora F. foi levada ao
CAPS por dois netos que estavam estarrecidos com a atitude da avó. J.M.F. era uma senhora
simples, humilde, que sempre se comportou dentro de padrões esperados para uma senhora de
família. Há uma ano, ela começou a cheirar cocaína cerca de três vezes por semana. Ela
morava numa comunidade pobre, bastante vulnerável, com o tráfico de drogas abundante na
vizinhança. Os próprios traficantes a alertavam: “Vó, a senhora tem que parar com isso, que
faz mal para o coração.” Os filhos financiaram o uso compulsivo de cocaína pela paciente,
pois segundo eles, se não fornecessem dinheiro para ela, J.M.F. os agredia fisicamente e às
vezes quebrava o que enxergava pela frente. Durante o atendimento, ela ficava exaltada
quando sentia que a família a repreendia em relação ao uso, parecendo não se importar com o
uso da droga como se fosse a coisa mais natural possível. Quando a perguntei por que usava a
droga, ela me respondia com cinismo “porque gosto”, e dizendo “eu cheiro assim ó”,
inclinando a cabeça em direção à mesa do consultório, unindo os dedos indicador e polegar da
mão direita em semicírculo, aproximando o nariz desses dedos com uma bela fungada
completando a cena. A ressonância magnética mostrava uma atrofia muito discreta no lobo
frontal, quase normal. A partir dos vinte anos, o nosso cérebro atrofia 0,1% ao ano, fazendo
com que a nossa capacidade cognitiva, de memorização, atenção, seja máxima aos 20 anos.
A pequena atrofia mostrada na ressonância me deixou em dúvida se era normal ou não.
Consegui agendar uma Tomografia Computadorizada por Emissão de Pósitron Único
(SPECT) em um hospital universitário. Esse exame mostra a captação de sangue pelas células
do cérebro. No caso de J.M.F., mostrou redução de fluxo sanguíneo no lobo frontal, uma vez
que a maioria dessas células estão mortas. Esse exame, altamente específico, confirmou a
hipótese de uma demência frontal.


Não pude acompanhar a senhora F. por muito tempo, porque ela faleceu em seguida devido a
uma insuficiência cardíaca. Ela tinha cardiopatia de Chagas desde a juventude, e sua morte
aparentemente não teve nenhuma relação, ao menos direta, com o uso de cocaína.
Essa foi a minha única paciente com demência frontotemporal que apresentou uma
manifestação “nasal” e não oral. Talvez esse quadro seja devido à mera alteração
comportamental bizarra e despropositada tão comum desse tipo de doença, uma vez que não
encontrei na literatura médica nenhuma referência a comportamentos nasais em pacientes com
demência frontotemporal. Por outro lado, esse caso poderá jogar luz em novas descobertas
neurocientíficas, já que o centro olfativo se encontra na porção anterior do lobo frontal.
Uma vez conheci outra paciente que carregava a erotização exagerada e perda de crítica
comum em pacientes com demência frontal em fase avançada. Senhora M., 75 anos, tinha
recebido alta de uma longa internação de sete meses num hospital psiquiátrico e ficado em
casa por uma semana. Como persistia com uma agitação grande em casa, foi levada ao
hospital quando eu a atendi na emergência. Ela chegou extremamente agitada no prontosocorro, tentando agredir todos na sua volta. Ao fazer a contenção mecânica, isto é, amarrar a
-paciente com ataduras de pano ao leito com a intenção de proteger a paciente e as demais
pessoas, ela começou a cuspir nas enfermeiras, alegando que não queria ser atendida por
mulheres. Ela queria ser atendida apenas por homens, e nas palavras dela, “eu quero ser
atendida por dois negão”. Na enfermaria, o sexo continuava sendo o único tema abordado
pela paciente. Quando alguém do sexo masculino se aproximava, ela começava a piscar os
olhos e abaixava o pijama e a calcinha, mostrando as partes íntimas e convidando ao sexo. Ela
certamente já se encontrava em um estágio bem avançado da doença, de difícil manejo não
apenas para a família, mas para os profissionais de saúde, tanto é que dali para a frente passou
a ficar a maior parte do tempo asilada numa instituição psiquiátrica. Claro que nem toda
demência frontal em fase avançada vai ter essa apresentação que vai ser tão singular quanto é
o ser humano.


Numa das consultas de rotina, tão logo Lauro adentrou meu consultório, perguntei-lhe como
tinha sido a semana. Ele contou que vendeu dois apartamentos no bairro de Pinheiros, sendo
que um deles era lançamento que ele conseguiu vender na planta para uma família que
desejava se mudar para um apartamento maior. Óbvio que não havia coerência nessa resposta
em um paciente que estava há mais de um ano sem trabalhar, entretanto ele não estava sendo
irônico. Esse quadro se chama confabulação, ou falsa memória, quando um indivíduo relata
um episódio que não aconteceu para preencher uma lacuna na memória. Na doença de
Alzheimer, a confabulação ocorre, porque a lesão se inicia no hipocampo, uma região
localizada no centro do cérebro, onde fica armazenada transitoriamente a memória para
eventos. Já na demência frontotemporal, a confabulação ocorre por um mecanismo diferente,
ou seja, há um prejuízo na memória de trabalho.


Quatro meses após eu ter visto Lauro pela última vez, Marta me ligou desesperada, contando–
me que Lauro apagava a luz várias vezes por dia. Alguns comportamentos tornam-se
inadequados porque estão fora de contexto, isto é, não se apaga a luz para economizar
energia, mas se apaga a luz sem motivação. A contextualização dos atos humanos é de
responsabilidade sobretudo das regiões pré-frontais, e provavelmente os pacientes
frontalizados são carentes de um nexo racional. Pedi à Marta que o levasse ao meu
consultório. Ao adentrar minha sala, percebi que ele não era mais aquele homem ansioso,
inquieto. Ele tinha se transformado num homem mais apático, alheio, desinteressado, uma
possibilidade com o progredir da doença. Apareceram dois novos fenômenos
psicopatólogicos: ele imitava os meus gestos (ecopraxia) e imitava as minhas palavras
(ecolalia).


Marta ficou seis meses sem aparecer em meu consultório, pois estava perto da aposentadoria e
preparando seu retorno para Recife. Quando reapareceu à consulta, Lauro já tinha piorado
muito nos testes cognitivos que apliquei. Em casa, ficava a maior parte do tempo parado, sem
iniciativa, recusando tomar banho. Ao sentar na minha frente, Lauro viu uma caneta sobre a
mesa, foi logo pegando-a. A esposa contou que, em casa, começou a esconder a escova de
dentes, porque sempre quando Lauro entrava no banheiro, já ia apanhando a escova de dentes
para escovar. Na sala de jantar, assim que o marido sentava, ia logo pegando os talheres. Esse
comportamento se chama “comportamento de utilização”, em que o paciente frontalizado
utiliza os objetos adequadamente, mas fora do tempo adequado.


Lauro e Marta, ao lado da filha, foram embora para a capital pernambucana.

Quando chegou em Recife, Marta perguntou ao taxista como era viver nessa cidade. A recém
retornada percebeu que sempre quando chegava noutro lugar, perguntava aos motoristas de
táxi como era morar naquele local. Pela primeira vez, perguntou como era viver em Recife.
Lembrou-se que Recife não era uma cidade onde as pessoas moravam. Era uma cidade onde
as pessoas viviam. Já não sabia se pertencia ao Nordeste ou à São Paulo. Estava tempo demais
fora de Recife para ser recifense, mas tempo de menos em São Paulo para receber um título
de cidadã paulistana. Recordou da infância, aquela infância cujos pais vão morrer um dia, mas
esse dia é sempre tão longe que nunca vai chegar.


A permanência de Luísa no ambiente doméstico era cada vez mais encurtada, dividida entre a
universidade e um namoro sério. Luísa estava agora com a mesma idade de Marta quando
saiu de seu ninho para construir uma vida. Flagrou o retrato de Luísa encostado aos livros e
sentiu que a filha se despedia. Em seguida a filha ganharia uma nova crença, uma nova
família, uma casa com novas cortinas. Apalpou a barriga que se mexia e percebeu que
gestava, desta vez fora de si, uma recente mulher que já dormia na casa do namorado.
Enxergou os livros atrás do retrato de Luísa. A esquisitice dos dicionários. A grossura dos
compêndios. O excesso de sentido dos livros de antropologia. Marta já tinha nascido com um
nome de socióloga. Tinha produzido sentido na existência de uma filha que vai aos poucos
rasurando os limites entre a sua casa e a do rapaz. Anulou todos os sentidos que a
equilibraram até ali a partir da vivência recente que teve com o marido. Recusou desvendar a
cilada. A vida não seria mais a procura de significados. A vida era uma sensação. Era
mergulhar no oceano de Recife. Desejou extinguir as fronteiras, as bordas, os limites. Nos
últimos anos, Marta conviveu com gente que tinha rompido a montagem dela.
Instalada em seu apartamento, apoiada no balaústre da varanda, ela vê, no intervalo dos
prédios, um pedaço de mar balizado pelas lanternas dos barcos pesqueiros encalhados. Seria
tão bom se as caravelas portuguesas que aportaram nesse porto há quinhentos anos a levassem
para a Europa. Por que a Europa não poderia ser uma armadilha? Prazo de garantia expirado.
Iria andar pelas ruas de Recife em busca de uma solidariedade possível nessa geografia
envelhecida. Sentiu saudades da mãe. Quis ter o marido ao lado, mas ele estava acomodado
em frente à TV, sem interagir. Na varanda, foi alcançada pelo cheiro de urina. Lauro tinha
urina nas calças, e Marta lágrima nos olhos. Eram partes do corpo dele que as caravelas
invisíveis estavam arrastando para outro continente.

Ziyad Hadi
I Concurso de Contos e Poesias ABP 2014

Link:

I Concurso de Contos e Poesias da Associação Brasileira de Psiquiatria

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