A FUGA

Em 2014, participei do I Concurso de Contos e Poesias da Associação Brasileira de Psiquiatria com dois contos.
Compartilho com vocês um deles, chamado “A FUGA”. Fiquei em 3º lugar neste concurso.

Samir mudava de pensionato pela segunda vez em uma semana.

Graciela, uma candidata à modista que conheceu na pensão de tia Lurdes, foi quem lhe
indicou essa terceira hospedagem.

A nova pensão, localizada numa travessa da tão popular José Paulino, seria mais
tranquilizadora para Samir por ter um caráter comercial, onde não existia por trás da direção
nenhuma tia Lurdes ou dona Estela. Além do mais, ficava numa rua cercada de lojas, com
grande variação de pessoas circulando no bairro durante o dia, entregando a cada transeunte
um anonimato e não um rosto que logo se torna familiar. Um local onde o balconista da
padaria demora a memorizar as preferências do freguês no café da manhã. Apesar de que seria
difícil algum atendente levar um maior intervalo para decorar os gostos desse cliente que
tinha o hábito de sempre tomar uma lata de Coca Cola light após uma dose de café expresso.
Esse costume já o acompanhava de longa data. Começou na época da residência médica em
Anestesiologia, onde as rotinas puxadas de extensos plantões varando madrugadas adentro
culminaram numa rotina onde café expresso e Coca Cola light viraram o antiveneno do sono e
do cansaço.

Esse novo pensionato se chamava Silva Pinto, o mesmo nome da rua onde estava localizado,
resultando num caráter mais impessoal tal como a rua movimentada que não se assemelhava
em nada a uma cidade do interior.

Samir já estava melhor acomodado na proteção de tia Lurdes. Era um paradeiro mais
tranquilo do que o da madame Estela, onde havia mulheres jovens maquiadas em excesso,
calças bem coladas ao corpo, pessoas de baixa cultura denotadas pela impossibilidade de
manterem uma conversa. O cheiro de perfume carregado e barato não deixava dúvidas sobre a
função delas. Havia ainda homens simples, vestindo jeans e tênis de pouco valor, que
ficavam o dia inteiro sem fazer nada e enredando a cabeça de Samir que não entendia qual era
o segredo deles, possíveis cafetões dessas moças. Esses hóspedes não incomodaram Samir.
Ele precisava se esconder da polícia federal que jamais iria procurar um jovem tão bem
apessoado num ambiente desses. O que determinou a transferência para o pensionato da tia
Lurdes foi o incômodo das dobradiças sem óleo a despejarem, a cada trinta minutos, visitantes
coreanos e bolivianos, afora alguns ajudantes de pedreiros locais, associados ao ranger das
camas, que parecia uma sinfonia de metais enferrujados e sexo rápido.

Na tia Lurdes, o silêncio era justificado pelo número de residentes, apenas quatro, e pelo tipo
de ocupação, sendo três rapazes estudantes de uma escola técnica, e Graciela, uma uruguaia
de Maldonado que viera fazer um curso de Corte e Costura no bairro. Foi ela quem deu as
coordenadas desse terceiro paradeiro ao médico foragido. À diferença dos dois alojamentos
anteriores encontrados através de anúncios em postes, “temos vagas para rapazes e moças”,
era a primeira vez que o novo pensionato seria uma indicação. Samir continuaria abrigado na
tia Lurdes sem maiores problemas, não fosse um pequeno detalhe. No dia seguinte à sua
chegada, percebeu a presença de um engraxate que ficava quase em frente ao pensionato. No
terceiro dia, estranhou a presença daquele engraxate que ficava o dia inteiro numa rua tão
residencial, deserta de cavalheiros de calças e sapatos sociais. No quarto dia, não restaram
dúvidas. Aquele senhor, sempre pronto a lustrar calçados que nunca apareciam, estava ali para
espioná-lo. Isso sem contar que se tratava de uma pessoa com cerca de quarenta anos de idade
com jeito de quem trabalha para esferas superiores do judiciário. Samir ficou convicto que
aquele vigilante imóvel se referia a ele. Nesse mesmo dia, se arrancou às pressas para o
pensionato da Silva Pinto.

No caminho, encontrou uma LAN HOUSE. Havia tempo que não entrava num recinto desses.
Estava acostumado a ter os mais modernos aparelhos tecnológicos e agora era obrigado a usar
a internet num desses ambientes coletivos festejados por adolescentes. Quando Samir
desocupou ligeiro o seu apartamento em Perdizes, deixou para trás os inseparáveis Iphone e
Tablet. Carregou apenas uma mochila com meia dúzia de roupas e documentos. Deixou um
bilhete para a diarista na portaria, informando-a que estava viajando para o interior, pois seu
pai doente o requisitava urgente. Abandonou o carro no estacionamento do hospital. Pegou
um metrô e desceu na estação da Luz.

Era a primeira vez que sentava na frente de um computador desde a fuga. Já tinha prometido,
dez dias antes, que não faria mais a tal pesquisa no Google, mas não resistiu. Ficou mais
descansado por ter ao seu lado apenas um público juvenil entretido em seus monitores.
Digitou as duas palavras que pesquisava diariamente nas semanas antecedentes à sua
transferência para a turma dos desaparecidos: Samir Abdallah. Deparou-se apenas com
alusões brandas usuais: esparsas publicações acadêmicas, o nome destacado no corpo clínico
do hospital onde trabalhava. Acelerou para a busca seguinte onde digitou os termos entre
aspas: “buy” e “kidney”. O seu prestigioso nome não configurava nos leilões de rins vendidos
a preços milionários. A ausência de uma ligação direta entre o seu nome e o tráfico de órgãos
nos mecanismos de busca não lhe proporcionou alívio instantâneo. Ele sabia por onde a
reputação dele circulava, pela Deep Web, ou “rede profunda”, onde gente de todo tipo troca
informação sem censura, garantindo a privacidade dos internautas, uma camada abaixo dessa
internet superficial e comercial que conhecemos. Há recursos bons na Deep Web. O próprio
Samir já tinha adquirido artigos científicos sobre o uso de fármacos cardiológicos que são
gratuitos nessa outra malha virtual, mas pagos na Web normal. Por outro lado, nesse espaço
sinistro da rede, circulam matérias que renderiam anos de prisão. Era nesse outro espaço por
onde transitam pedófilos, traficantes de armas, hackers, seitas macabras que circulava a
reputação de Samir, porém ele não ousava se procurar na Deep Web, temendo o rastreio dessa
zona onde o sigilo do navegador nunca é cem por cento confiável.

Ao se instalar na Silva Pinto, cochilou de imediato, esgotado pela ansiedade de tudo o que
vivia. Foi só ao acordar que reparou melhor no estreito cômodo destinado a ser o abrigo de
um dia de cada vez. O mobiliário de madeira parecia ter estagnado nos anos oitenta. A colcha
fina não era aparelhada para os dias mais frios, e a magreza da roupa de cama competia com a
pequena quantidade de espuma do colchão. Um espelho retangular sem moldura se retirava
para a parede oposta à da cama. Na cabeceira, uma bíblia sobrevivia com o apelo de ser
folheada. Esse dormitório tinha um banheiro próprio com azulejos quebrados, expondo o
reboco das paredes emboloradas pelo vazamento, e o cheiro de mijo lembrava o bafo urêmico
de indivíduos do outro lado do mundo agoniados para se livrarem das máquinas de diálise.
Não pôde banir do pensamento aquele bilhete de metrô que foi o ingresso para esse cemitério
de identidades. Alguns dias antes, entrou na estação do metrô Clínicas assustado, mas com a
expectativa de um indivíduo que vai ser sorteado. Disse bom dia à moça do guichê que não
respondeu nada e nem olhou na cara dele. Samir pensou, num primeiro momento, que aquele
vidro do guichê dificultava qualquer escuta. Após acreditou que a demanda de um trabalho
repetitivo despersonalizava os atendentes. De qualquer forma, comemorou a invisibilidade
dele diante do olhar da funcionária, pois ela não registraria a partida dele para um segundo
cenário, separado por uma viagem de metrô. Não era acostumado a usar transporte público.
Na estação Brigadeiro, chegou a suspeitar que alguém pudesse estar seguindo-o. Pulou para
fora do trem, passou na catraca, entrou na livraria da esquina por meia hora e retornou para a
mesma estação. Ao longo do trecho percorrido, percebeu que se essa viagem fizesse parte de
sua rotina, poderia adivinhar cada parada pelo perfil dos passageiros. Nas estações da Avenida
Paulista, muitos executivos engravatados. Na estação Vergueiro, gente vestida de branco
sugeria a presença de muitos hospitais na região. Na Liberdade, japoneses. Estação São Bento
era aportada por muitas sacolas de compras, revelando que a rua Vinte e Cinco de Março
deveria estar nas adjacências. E na Luz, o que aguardava por Samir?

Ao descer na estação Luz, ficou parado na avenida Tiradentes, de costas para o museu de Arte
Sacra. Avistou um colossal prédio em estilo inglês, com telhado em forma de elipse,
sinalizando que a Luz deveria ficar para aquele outro lado da avenida. Atravessou a passarela
e se meteu na rua Mauá, passou em frente a uma bombonière chamada Kakau Legal e
inventou para si que o uso da letra K era uma tentativa de americanizar o lugar para
homenagear os ingleses fundadores da estação rodeada por camelôs nigerianos vendedores de
pentes, relógios e cintos naquela hora da manhã. Tardou algumas horas para que encontrasse a
sua primeira hospedagem, anunciada num cartaz em um poste numa rua colateral da rua
Mauá. Naquele primeiro dia enquanto Samir garimpava uma vaga nos estabelecimentos
duvidosos da região, reparou que seus tênis muito limpos, brancos de alvejante, comunicavam
aos originários do bairro que ele estava fora do lugar, deveria ter uma mãe ou uma doméstica
responsável por aquela limpeza, e que seu corpo, com sobrepeso, contava para todos sobre o
rapaz bem alimentado. Em um dos canteiros da rua, esfregou os tênis na terra para dissimular
quem ele poderia ser.

De volta no tempo e espaço ao terceiro pouso, da Silva Pinto, Samir escutou vozes
provenientes do corredor. Eram sons guturais. Eram homens falando árabe. Ele acabava de ser
encontrado pelos patrícios. Sentiu vontade de abrir a porta e contar a verdade, que ele não
estava auferindo lucros gigantescos com os xeiques em hemodiálise, que não adiantava esses
desesperados fregueses avizinharem seu quarto pedindo para furar a fila de transplantes. Tão
inocente, mas levando a vida de um réu. Era verdade que Samir, quando se formou em
Medicina, trabalhou no programa saúde da família em uma comunidade para além de
Sapopemba, chegou a fazer trabalhos extras como médico da ambulância para complementar
a renda, enquanto estudava para a prova de residência. O contato mais próximo que ele teve
com transplante de órgãos foram algumas remoções que ele fez de cadáveres doadores de um
hospital para outro, tão concentrado no monitor, nas bombas de infusão e no respirador com a
insegurança de um recém-formado, numa tenacidade desafiadora do barulho da sirene, que a
única preocupação do jovem médico era chegar com o defunto viável até a outra ponta.
A preocupação no último mês era com a polícia, forçando Samir a evitar que qualquer pessoa
tomasse conhecimento dele. Ele passou a ser acusado de intermediar a compra de rins de
gente muito pobre em Sapopemba e vender para abastados no Golfo Pérsico. Há uma cultura
entre as classes menos favorecidas da América Latina de que se existe dois, pode-se vender
um, acarretando uma explosão de córneas e rins comercializáveis nas periferias do nosso país.
As vísceras começaram a seguir um trajeto previsível, do mais pobre para o mais rico, do
negro para o branco, do hemisfério sul para o hemisfério norte.

O paciente doador viaja para clínicas particulares na África do Sul, o receptor do órgão viaja
do Oriente Médio para essas clínicas. O pacote para um árabe já inclui a hospedagem, a
cirurgia, os gastos hospitalares e a víscera humana. Os rins são comercializados entre
cinquenta e cento e cinquenta mil dólares, e uma pequena parte desse dinheiro chega nas
mãos da equipe cirúrgica e do hospital. Uma menor quantidade ainda vai para o doador que
recebe entre dois e cinco mil dólares pelo seu rim. A maior parte desses lucros fica com os
intermediários da operação, peritos em negociar órgãos num vasto mercado negro.
A vida de Samir vinha transcorrendo com tranquilidade até aquela terça-feira de março
quando anestesiava uma cirurgia cardíaca de grande porte. A nova instrumentadora cirúrgica
surgiu pela primeira vez naquele bloco a fim de substituir uma colega e comentou com toda a
equipe que, aos arredores de sua residência, no distrito de Sapopemba, passou a ser notório,
no último verão, os habitantes do bairro desfilando com uma cicatriz na região da coluna
lombar, sempre obedecendo a um mesmo padrão, um corte diagonal, com cerca de 12 cm, de
um único lado, geralmente à esquerda. O cirurgião cardíaco comentou que tal fato era
estranho, pois no, último ano, não tinha sido registrado nenhum aumento no número de
transplantes na nefrologia, e que a maioria desses rins eram originários de motoboys mortos
no trânsito de São Paulo. Toda a equipe foi solidária com essa incompatibilidade. A
instrumentadora cirúrgica não se conteve e seu olhar invadiu os olhos de Samir, condenando-o à ilegalidade.
Samir entendeu a mensagem na atitude da instrumentadora. Nada tinha sido por acaso. Ela
tinha combinado com a outra colega que seria a substituta oficial naquele dia, que nenhuma
mensagem seria dada diretamente para Samir, mas diluída numa conversa ocasional no meio
do grupo. Caberia a ele cumprir a sentença.

No café da manhã na Silva Pinto, avaliando as conversas alheias, raciocinou que esses sírios
eram comerciantes de confecções, a maioria de Brasília. Por que estavam concentrados num
local tão sem glória? Talvez fossem negociantes modestos com lojas na periferia da capital
federal, ou talvez elegeram o edifício da Silva Pinto pela proximidade com a rua José
Paulino, principal alvo do centro atacadista. Ficou pouco convencido que os sujeitos de
bigode otomano e hálito de quibe cru fossem pequenos empresários, mas já estava cansado
demais da falta de novidade dos pobres quartos, de retirar e recolocar as roupas na sacola de
viagem, de sair correndo. Demorar muito tempo no mesmo local também não seria uma boa
estratégia. Os responsáveis da área cismam com a falta de intimidade e excesso de
formalidade do inquilino. Com o tempo, o segredo do itinerante doutor ficaria implícito para
a família que administrava a atual hospedagem. Precisava encontrar alguma atividade na
região que justificasse para os outros a sua estadia.

Enfiou-se na rua tentando descobrir qualquer coisa para ocupar os seus dias. O crime era
grave demais para ficar socado no quarto sem chamar a atenção de qualquer esperto. Ele era
o legítimo intermediário entre gente miserável do Brasil e cidadãos donos de petróleo, de
ouro vinte e quatro quilates, de hotéis sofisticados, de lojas de pássaros luxuosos onde cada
falcão não custa menos do que meio milhão de dólares no Kwait, Omã, Qatar e Emirados
Árabes. Desejou ser pego no colo. Evocou o pai, a mãe, as tias, as primas mais velhas. As
primeiras pessoas que nos pegam no colo no início da nossa biografia são as mais sagradas.
Esse acervo familiar estava temporariamente interditado. Correria muito risco ao pegar um
ônibus para a casa dos pais no interior. Tinha poucos amigos e ninguém o suficiente para
confiar os acontecimentos. Os colegas também não guardariam o segredo, e o tribunal lhe
aguardaria em meses. Entrou pela primeira vez na Igreja do Largo Santa Ifigênia e executou
uma reza rápida, mas restauradora. Passou em frente aos botecos onde ele foi condenado a
ser turista nos últimos dias, atravessou um quarteirão cercado por buquinistas nos dois lados
e reparou que esses sebistas de rua também vendiam livros eruditos, como filosofia e
antropologia. Na esquina, não ignorou a presença de uma cigana que irrompeu detrás de um
pilar sob a marquise, com vestido colorido e remendado, dentes de ouro, num mosaico
semelhante ao vitral da igreja do Largo. A cigana o chamou alertando que guardava uma
mensagem importante. Samir parou e começou a andar na direção contrária. Ciganas lêem o
pensamento. Essa mulher certamente sabia que o inédito pedestre era um corretor de órgãos.
Samir acelerou o passo, alarmado, com vontade de correr, mas pernadas mais ousadas não
eram condizentes com um rapaz de sua idade e denunciariam uma infantilidade ou pior, a
autoria. Quando encostou na calçada oposta, Samir acatou um recado daqueles dentes de
ouro: “Uma mulher vai salvar a tua vida”. Alguns quarteirões mais distantes, atingindo a
avenida Cásper Líbero, o doutor tentava desenhar, na mente, as feições da mensageira e
esfregou as mãos no rosto ao se dar por conta que a maioria dos retalhos daquele vestido
eram vermelho encarnado, a cor do sangue, do mercado vermelho.

Fez um giro prolongado na imediação da estação da Luz, e entrou na Pinacoteca do Estado.
Ficou impactado com a escultura em pedra “Eva Mulata” de Ottone Zorlini, sem data.
Baixava os olhos para o manual da pinacoteca que carregava nas mãos cada vez que passava
por um segurança, tentando dar um ar de quem venera a arte, de quem já visitou muitas
instalações clássicas ou modernas. Era possível que vigilantes de coleções de arte nada
soubessem a respeito de Samir, pois a dívida dele com a humanidade talvez só interessasse
aos mais altos patamares forenses. Não era de bom tom, entretanto, facilitar. Samir não deu
tanta importância para os seguranças do edifício que visitou na sequência, o Museu da
Língua Portuguesa, em frente à pinacoteca. No Beco das Palavras no interior do museu,
percebeu que os seguranças tinham cara de quem toma remédio controlado, contrastando
com o semblante vivo dos jovens monitores, igualando-se apenas na cor das vestimentas.
Usavam preto. Havia uma exposição temporária sobre Jorge Amado, e Samir leu a carta de
Dorival Caymmi para Jorge quando o escritor baiano morava em Londres. Dorival conta que
tinha acabado de compor uma canção para Yemanjá, que no dia anterior tinha saído com
Carybé e confessa que seria pintor se tivesse tempo, pois se ganha uma fortuna com a pintura.
“O tempo que tenho mal chega para viver: visitar Dona Menininha, saudar Xangô,
conversar com Mirabeau, me aconselhar com Celestino sobre como investir o dinheiro que
não tenho e nunca terei, graças a Deus, ouvir Carybé mentir, andar nas ruas, olhar o mar,
não fazer nada e tantas outras obrigações que me ocupam o dia inteiro. Cadê tempo pra
pintar?” E conclui a carta pedindo que Oxóssi o proteja nessas inglaterras e, ao retornar para
o Brasil, lhe traga um pano africano para Dorival fazer uma túnica e ficar irresistível.
Fazia tanto tempo que não circulava fora do eixo sala cirúrgica e moradias desajeitadas. O
passeio lhe deu um cansaço. Estava retornando para o pensionato pela calçada da estação, e a
cúpula de uma construção atrás de um amontoado de condomínios determinou um desvio de
percurso, enamorado pela beleza da cobertura. A cúpula pertencia à estação de trem Júlio
Prestes colada à Sala São Paulo, separados por uma vidraça. Cruzou o acesso principal da
Sala São Paulo e alcançou o saguão principal. O chão com ladrilhos verdes se articulando
para compor folhas de café reportavam aos tempos áureos da república Café com Leite.
Aproximou-se do bar para pedir um capuccino, mas era impedido de chegar ao balcão da
cafeteria pelo alvoroço das crianças com uniformes da escola POTY, que estavam em visita
guiada e pareciam decididas a comer um salgado ou um chocolate no mesmo instante em que
ele decidira tomar uma bebida quente. A gritaria da meninada competia com a Bachiana 5 de
Villa Lobos resultante de um ensaio na sala de espetáculos. Voltou ao hall de entrada para
apanhar a programação e se mesclou ao grupo de senhoras cativas, tentando escutar os
palpites sobre os concertos.

Consumido pelos passeios do dia, retomou o caminho da Silva Pinto. Surpreendeu-se com a
exploração do centro da cidade. Samir resvalou no desejo de conhecer São Paulo melhor do
que Balzac conhecia Paris. Era obrigatório esperar os últimos eventos se acalmarem para ser
o dono da rua. Lembrou os seus avós que percorreram esse mesmo bairro há anos como
mascates libaneses, comparáveis a reis da dignidade, adquirindo artigos para rechearem as
prateleiras de seus armarinhos, e hoje o neto retorna para o mesmo ponto como um médico
foragido dos tribunais.

Naquela mesma noite, deitado no quarto, amou com coragem os bêbados da estação da Luz,
única audiência do velho piano de armário interpretado por pianistas amadores na antessala da
estação. Deus fez o homem com duas doses de cachaça a menos.

Os dias seguintes foram distraídos pelo tripé cultural: Sala São Paulo, Pinacoteca do Estado e
Museu da Língua Portuguesa. Tinha encontrado uma ocupação. Comunicaria à equipe do
pensionato que estava na região para fazer uma pesquisa destinada a um romance. Ao menos
para a equipe da Silva Pinto, Samir perderia o ar de quem esconde alguma coisa. Além do
mais, o vigente erudito escolheu com critério os locais mais refinados que frequentaria, para
que ninguém o acusasse de traficante. Evitava a Igreja Santa Ifigênia por medo de reencontrar
a cigana. Na Sala São Paulo, domesticou o silêncio básico para apreciar a pausa entre duas
notas. Esse mesmo aprendizado foi levado aos outros dois museus onde se transformou num
espectador emudecido diante de uma tela ou de um poema. Se a loucura, em tempos remotos,
era jogada ao mar ou largada em cidades distantes, confinada em leprosários, agora essa bruxa
de pano inventava uma desculpa no pensionato onde estava abrigada e era acolhida nos três
prédios desse patrimônio de extrapolações humanas. A loucura libertou os cinco sentidos de
gênios que conseguiram extrair o melhor de seus cérebros, corações e mãos. A perfeição da
Eva Mulata. Os quadros de Almeida Júnior. Os poemas de Drumond. O temperamento
inquietante da música de Villa Lobos.

A frágil tranquilidade conquistada nesse eixo estético começou a dar sinais que faltavam
demônios. Samir sempre caminhava no encostado do Parque da Luz para chegar à
pinacoteca. Reparou nas prostitutas, em média entre quarenta e cinquenta anos, gordinhas,
maquiagem supérflua, míopes de esperança. O porte terreno e pesado dessas mulheres
confrontava os bichos-preguiça leves das árvores. Conhecedor dos puteiros chiques de
Moema, deduziu que não era natural uma garota de programa ter aquelas silhuetas e nem
aquelas décadas. Já tinha se esbarrado com uma delas, ao entardecer quando as lojas
tradicionais baixavam as cortinas de ferro, e uma das moças veio na direção dele cheirando
os punhos, saindo de uma loja de perfumes. Um raio nunca cai duas vezes no mesmo lugar.
Foi aos poucos suspeitando que toda aquela estranheza se referia a ele. Ao cruzar pela quarta
vez por uma senhora que vendia a própria alma aos sessenta anos, obesa em estágio
moderado, braços flácidos como resquícios de uma maior gordura prévia, não sobraram
questionamentos: a velha dama com um manto de água azul nas costas, que num outro
contexto poderia ser a Nossa Senhora Aparecida, era uma informante da polícia federal
contratada para o perseguir. Invadiu a Alameda das Alecrins de Campinas, contornou o
coreto e flagrou a espiã ostentando um cigarro na boca, com um vestido de melindrosa preto
e alças de lamê prateado, como se fosse dia de carnaval. A caracterização tão estereotipada só
serviu para certificar a mãe de três filhos crescidos, trabalhadora numa delegacia com carteira
registrada. Rumou à mulher, desta vez reclinada na borda do lago Cruz de Malta. Primeiro,
fixou a imagem dela no espelho d’água e treinou, em silêncio, o que diria aos berros. A
biscate presumiu ser mais um tímido tentando lhe abordar. A burca tinha sido retirada do
falcão pronto para atacar o coelho. Samir gritou para a mulher que ela não precisava ir atrás
dele, um inocente, soltou palavras de baixo calão num volume mais alto do que o barulho do
espumante que batia grosso na base do chafariz, as mãos circundaram o pescoço da mulher
que sacudia os braços numa tentativa de pedir ajuda numa tarde de poucas pessoas pelo
parque, espantadas pelo frio. As pombas silvestres voaram para o telhado do ponto do bonde.
Empurrou a mulher para dentro do lago, empapando-se inteira, quando a polícia de verdade
chegou.

Eu estava no final do plantão, cobrindo um colega que não pôde trabalhar na quinta-feira,
quando o paciente chegou trazido pela polícia e pelo SAMU. Não havia psiquiatra no
hospital de referência, e levaram-no ao pronto socorro do hospital público onde eu estava
trabalhando naquele dia. Samir entrou a sala de consulta deitado numa maca, amarrado,
agitado. As veias jugulares saltando para fora do pescoço, caretas largas num rosto
ruborizado somavam esforços para arrancar as tiras da contenção. Anunciava a própria
condenação e a morte na cadeia. Os olhos dele eram enterrados nos meus ao pedir para livrá-
lo daquela condição, alegando que era injusto o cerco da polícia. Manifestava que a sua única
relação com o universo dos transplantes consistia na remoção de algumas vítimas de morte
encefálica quando trabalhou na ambulância. Negava ser corsário de vísceras e depunha
abertamente que nem sequer transportou um doador vivo dentro de qualquer veículo.
Sustentou para a platéia do coliseu que era membro da Sociedade Brasileira de
Anestesiologia. Quando me apresentei, ele se atualizou como um rapaz submisso e seguro,
pois presumiu que, pelo fato de eu ter um nome árabe e sobrancelhas cerradas, seu colega de
profissão estava inserido dentro de uma conspiração daqueles prestigiados sultões do deserto
para lhe dar cobertura. Samir acabava de ganhar um aliado. Aceitou ficar na observação da
enfermaria e fingiu estar doente.

Na primeira noite no pronto socorro, Samir Abdallah se assustou quando dona Yoko, uma
japonesa de pijama verde, meias cinzas e havaianas amarelas, toda entrosada, comunicativa,
se aproximou, insistindo: Eu conheço o senhor. Ele paralisou e nem se atreveu a perguntar de
onde. Em seguida, recuperou o ritmo mais leve da respiração quando a paciente completou:
O senhor é Tiradentes. Por alguns instantes, ele tinha esquecido que estava protegido dentro
de uma observação psiquiátrica.

Samir adequou-se à nova conjuntura. Um ambiente para recuperação de saúde era menos pior
do que um para reabilitação de detentos. Ele seria despejado de uma penitenciária com a
estigma de criminoso, perdendo a primariedade. Agora seria um egresso de um hospício e
talvez as pessoas começassem a ter compaixão por ele, poderia ganhar amigos confidentes,
uma companheira para o almoço juntos, e provar para o mundo que não desejava mal para
ninguém, caráter invejável, uma existência focada no rigor técnico dos procedimentos
anestésicos. Era ciente das responsabilidades e tinha profundo respeito pelos pacientes. Um
amante das ciências desde a meninice quando o tio Anuar, formando círculos de charuto no
ar, discorria sobre os experimentos que fazia com produtos veterinários. Samir teve alguma
convivência com a alienação mental na graduação. No quinto ano da faculdade, tinha passado
pela disciplina de saúde mental e finalizado um estágio no manicômio.

O jovem doutor passava a maior parte do dia ocioso. Samir intercalava a estadia entre o seu
leito de ferro e um televisor dependurado no corredor espremido, único entretenimento no
setor, em meio aos pacientes inquietos, olhares desfocados pela medicação, que não
aguentavam ficar inativos, uns insistindo pela vaga num hospital, e outros pedindo por alta,
defendendo que não eram doidos e anulando os pretextos para internação. A enfermeira
chefe, por piedade, trouxe de sua própria casa os dominós, algumas revistas da semana
anterior, os quebra-cabeças para desentediar os pacientes. Não havia outras atividades iguais
a uma enfermaria tradicional, tais como terapia ocupacional, ginástica, terapias de grupo,
porque era a observação de um pronto-socorro onde os enfermos deveriam ficar por apenas
doze ou vinte e quatro horas e serem transferidos para um hospital. O anestesista aterrissou
nessa observação durante o destaque do combate ao crack pela rede pública. Priorizaram os
dependentes químicos e começaram a faltar vagas nos grandes hospitais, amontoando os
psicóticos nas salas de emergências. Essa longa permanência de pacientes temporários
permitiu que eu conseguisse conversar com Samir ao longo de quinze dias.

O colega tinha passado para o outro lado, e cabia a mim, diarista da enfermaria naquela
época, conduzir o caso. Samir estava convicto que eu era o seu cúmplice, facilitando a nossa
relação, embora eu deixasse claro desde o início que eu era apenas o psiquiatra desse serviço
sem nenhuma conexão com a conspiração internacional. Contou-me todo o percurso desde o
dia de sua fuga de casa para o bairro da Luz. Estavam atrás dele porque era de origem árabe,
morava sozinho, era médico na América do Sul, já tinha trabalhado na periferia de São Paulo
onde o povo comercializava pedaços do próprio corpo, e os principais receptores estavam
concentrados no território entre os mares Vermelho e Mediterrâneo. Dissertou ainda sobre a
Deep Web. Os mesmos inocentes que corriam para as plataformas de embarque, iluminados
pelo sol que atravessa o telhado de ferro do recinto, indiferentes ao repertório tocado nas
teclas sujas de um piano Fritz Dobbert na portaria da estação, despregavam as máscaras na
Deep Web, trancados em seus quartos, depois do pôr do sol ser aplaudido em alguns mirantes
do país. Expressei que entendia o quanto ele estava sofrendo e exausto com tudo o que vinha
passando nos dez últimos dias. Samir concordou, aumentando a sua confiança em mim.
Quando eu tentava coletar dados adicionais da sua narrativa, Abdallah era incapaz de me
oferecer provas de que alguma instituição nacional ou estrangeira estava no seu encalço, me
causando a impressão de que não passava de um jovem de boa índole, cercado apenas de
colegas de trabalho, sem namorada, ético, dedicado à maestria da ciência. Nunca dava
explicações que se encaixassem dentro de uma lógica. Conformava-se em estar no mundo
como o maldoso especulador de rins.

Na admissão, o meu paciente recusava tomar medicação, argumentando que não tinha
problemas. Disse-lhe que prescreveria medicações para ansiedade, irritabilidade, em razão de
ter chegado muito nervoso à sala de emergência, acompanhado inclusive pela polícia, ter
sofrido alto grau de tensão nesse tempo fora de casa. Ao ser interrogado qual medicação
tomaria, respondi que não se preocupasse com isso, que era eu quem precisava saber qual a
medicação exata. Ele retrucou, alegando que tinha o direito de saber. Discursou sobre
Foucault e o poder psiquiátrico. Samir tinha amplos conhecimentos em farmacologia e me
questionava sobre as medicações prescritas, doses, mecanismo de ação e finalidade. Eu evitei
responder a parte dos neurolépticos, porque ele certamente sabia que tais medicações eram
usadas por quem perdeu a crítica da realidade e não reconhecia a necessidade de voltar a ela.
Se eu inicialmente desafiasse os seus delírios, ele não se sentiria acolhido, poderia me
hostilizar, prejudicando a aliança terapêutica. Acordei com ele que, nessa passagem pelo
hospital, ele não seria o doutor, mas aceitaria ser paciente, e eu, o médico assistente. Prometi
prescrever conforme a minha avaliação e aguardar a evolução. Ele concordou, resignado.
Havia a possibilidade de que escondesse da enfermagem o remédio embaixo da língua e
depois jogasse no vaso sanitário. Introduzi medicação injetável para não correr esse risco.

Após duas semanas de internação e alguns mililitros de neuroléptico no cérebro, Samir tinha
reduzido a intensidade de seus delírios. Ele percebeu que jamais esteve em contato com
trapaceiros, não havia nenhum email alusivo ao delito, nem telefonema registrado nas suas
contas mensais, era incapaz de nomear um comparsa, jamais rodou dinheiro pelo bolso que
não fosse comprovado pelos holerites da cooperativa dos anestesistas. Tinha recuperado
parcialmente a crítica, persistindo com alguma vivência de perseguição.

No décimo quinto dia, Samir recebeu alta do pronto-socorro e voltou para Luz. Acertou seu
paradeiro dessa vez num hotel simples. Ele nunca tinha se registrado num hotel desde quando
partiu do metrô Clínicas. Uma hóspede pálida com um livro de auto-ajuda nas mãos cruzou
por ele. Devia ser uma paciente dialítica. Esses pacientes lêem mais livros de auto-ajuda do
que a média da população. Samir estacionou um pouco a própria angústia e conseguiu pensar
melhor, que essa elaboração a respeito da hóspede não fazia sentido, que o problema era ele
quem estava assustado, envolvido demais numa trama fictícia criada por si. Quanto mais a
medicação agia na mente, mais Samir se permitia migrar para acomodações melhores.
Mudou-se na semana seguinte para o hotel Piratininga, no Largo General Osório, o mais
parecido com um hotel normal, com o preço de uma diária similar a outros em bairros
executivos. Quando descobriu que o novo lugar ficava diagonal com a Escola Livre de
Música Tom Jobim, pediu para mudar para o quarto da frente, a fim de escutar os ensaios.

Matriculou-se na oficina de poesia no Museu de Língua Portuguesa. Conheceu Greta,
professora de Letras numa escola municipal no subúrbio. Todos os dias na saída da aula, eles
se sentavam no boteco da esquina diante do hotel Piratininga, na janela que dava para o lado
da Escola Tom Jobim. Treinavam sua escrita, as rimas, os parágrafos, e sobretudo os
silêncios, sincronizados com a interrupção musical dos aprendizes da escola vizinha. Entre
sanduíches de mortadela e Coca Cola light, a professora contou ao colega que estava se
recuperando de um tratamento de depressão, estava afastada pelo INSS, porque, na pequena
escola onde trabalhava, era vítima de agressão dos alunos. Acrescentou a admiração por
médicos, e ressuscitou a frase de Homero, em Ilíada, onde proferiu que um médico vale por
muitos homens. Samir fez revelações sobre o seu tratamento e detalhou a sua epopéia.
Descreveu a insalubridade do pronto-socorro, um ambiente onde se poderia decretar o fim da
história da arte. Não autorizou a assistente social entrar em contato com os pais dele e omitiu
de todos que, na verdade, recusou a transferência para um hospital do convênio ou particular
por acreditar que não teria a proteção de um psiquiatra árabe. Greta ficou fascinada com todo
o itinerário do seu locutor. O jovem se surpreendeu. Pela primeira vez, uma criatura não se
assustava com a história dele. Pelo contrário, ficava encantada.

Samir ficou menos resistente à profecia da cigana no tocante à mulher salvadora. Numa tarde
chuvosa, sentados no mesmo boteco de sempre, pediram um chá de limão. Conforme a
amizade entre ambos aumentava, a harpa da escola ao lado expatriava os medos e, distraídos,
chegavam a aplaudir alguns trechos automaticamente, mesmo sem enxergar quem dedilhava
o instrumento mais antigo da Terra.

– Pela delicadeza deve ser uma mulher quem está tocando, né professora?

Será que alguém era louco ou lúcido quando queria que tudo virasse música? A vida tinha
tantas possibilidades, e tiveram um apetite inédito de amolecer os gessos de suas
enfermidades. Os rostos avermelhados eram a brutal presença do sangue que ganhava a
periferia da pele, sem identificar se era por causa da música, do calor da bebida ou do novo
agrado que tomava conta dos dois. Samir empurrou a xícara de chá, quase vazia, na direção
da xícara de Greta. Ela fez o mesmo com a dela. A aproximação das taças foi seguida pela
das mãos. Ele pegou na mão dela. Ela respirou. Ele respirou. Eles riram.

No quarto do hotel Piratininga, os corpos, em posição horizontal, ultrapassaram Homero na
nova odisséia, como se a vida tivesse articulado para que o casal estreante desse certo. A Eva
Mulata fugiu da Pinacoteca do Estado para se materializar em proporções maiores na
moldura de uma cama. Fizeram amor com a potência dos anjos fortalecidos. Os instrumentos
de percussão da Escola Tom Jobim explodiram em elogios no mais alto volume. Um vaso de
flores de plástico amarelas. Era o mundo observando esse novo amor. Agora Greta entendia a
frase de Nelson Rodrigues que apenas o amor feito com os loucos é o verdadeiro amor. O
esperma escorreu de sua vagina bordando a palavra “liberdade” entre os fios dos lençóis
pretos.

Atualmente, vejo Samir uma vez por mês no consultório. Ele segue medicado com
neurolépticos, faz psicoterapia com uma psicóloga. Os delírios não remitiram na sua
totalidade. Eu arriscaria dizer que melhoraram oitenta por cento, ficando o restant
encapsulado. Samir voltou a morar no seu apartamento em Perdizes e reassumiu sua função
no mesmo hospital de antes. Quando passa em consulta comigo, me presenteia com alguns
poemas de sua autoria, sempre se defendendo: “não estão perfeitos, são apenas exercícios”.
Recentemente contou-me sobre a descoberta de um samba de roda, em plena rua do Bixiga
na frente da igreja da Achiropita, nas noites de sexta-feira. Comenta sobre seu fascínio por
Noel Rosa e Cartola como se esses compositores tivessem nascido apenas no dia quando
foram descobertos pelo jovem anestesista. Orgulha-se da silhueta da Greta dançando na
calçada atingida pela meia luz da igreja da Achiropita. Greta foi morar com Samir em
Perdizes, e ficam horas fazendo planos sobre um primeiro bebê, seu nome, os desenhos do
papel de parede, brincando que, no frio de junho, o herdeiro será tão bem coberto que mal
conseguirão enxergar a cara da criança. Samir está cada dia melhor. O que nos adoece é a
incapacidade de amar.

Ziyad Hadi
I Concurso de Contos e Poesias ABP 2014

Link:
I Concurso de Contos e Poesias da Associação Brasileira de Psiquiatria

Compartilhe: