“Devolvam a minha história, por favor”

O que um homem pode fazer para reconstituir seu passado num país que encontra na tradição oral a sua validação maior? Basta inundar de perguntas seus parentes mais amadurecidos. E se esses pais, tios e avós, já estiverem ausentes ou com a memória prejudicada?

O escritor libanês Amin Maalouf, 73 anos, foi salvo por uma mala, doada a ele por sua mãe, contendo cartas de seus ancestrais. No livro “Origens”, prêmio Méditerranée de literatura 2004, Amin reúne, num inquérito jornalístico e romanesco, a biografia de sua família. Impossibilitado de dar voz aos vivos, ele começa a ouvir os testemunhos dos mortos, arquivados  em um século de correspondências. O narrador insinua a trajetória de seu avô Botros, senhor das letras, que permaneceu no Líbano, e de Gebrayel, seu tio avô que migrou para Cuba. O mais interessante é que, a partir dessas cartas, o escritor não precisou inventar nenhuma estória para preencher as lacunas deixadas pelo que não foi dito, ou melhor, pelo que não foi escrito. Pelo contrário, vai criando hipóteses a partir de documentos reais.

No começo do livro, Amin nos comunica que as raízes foram feitas para as árvores, numa simbiose onde as plantas não conseguem perdurar se forem cortadas da terra. Para essa família que conheceu a diáspora em tempos idos, apenas as estradas contam. Para Amin, as estradas certamente contam muito mais. Imigrado para Paris desde 1976, o romancista declarou, ao ser perguntado se pretende regressar ao Líbano, que o mais importante era estar num ambiente onde pudesse escrever. “A minha pátria é o sítio onde posso escrever.”

Esse livro me transportou para a minha infância, quando meu pai recebia cartas de seus patrícios, amontoando todos nós para ouvir as notícias do Oriente Médio. O mais admirável eram as fitas cassete que registravam a flauta de um tio meu, os depoimentos dos primos do meu pai, o choro da minha avó que ainda esperava o retorno do filho e quem sabe conhecer os netos fertilizados nesse lado de cá do Oceano Atlântico, desafiando-me a adivinhar a anatomia daqueles rostos escondidos nas gravações. Ao inverso da genitora de Maalouf, a minha mãe não teve a disciplina de armazenar esses registros. 

O meu receio na atualidade é que uma produção escrita tão singular como essa deixe de ocorrer. Uma fonte de informações tão preciosa para as gerações posteriores. Hoje temos o email, as mensagens instantâneas, as fotos digitais, os vídeos, as redes sociais. Existe, no presente, uma comunicação e uma abundância visual enorme, apagáveis com apenas um toque. Tudo correndo o risco de ser descartado. A pergunta inadiável é: esse material resultante da tecnologia vai ser bem armazenado, cuidado, resistir além da nossa época? 

As cartas, essas testemunhas de articulações frágeis, assim denominadas pelo escritor libanês, amarelaram, mas confeccionadas artesanalmente, passíveis de serem espremidas contra o peito, sobreviveram ao tempo e reservaram aos Maalouf, uma família tão nômade e dispersa, dois refúgios seguros, o livro e a imortalidade.

Ziyad Hadi
Psiquiatra

O livro “Origens” resgata a história da família de Amin Maalouf

Links:
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Amin Maalouf
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