A crônica da menina que chorou no teatro

Eu, a minha esposa e o nosso filho estávamos fazendo uma visita guiada pelo Theatro José de Alencar em Fortaleza há duas semanas.

No meio dos turistas, havia uma moça, ao redor de seus 20 anos, proveniente de Manaus, que chamava a atenção pela forma rebuscada e intensa como se posicionava para tirar suas fotos. Exagerava as caretas, dava giros no palco, alargava os braços e, sobretudo, fechava os olhos na maior parte das vezes.

O que ela via quando fechava os olhos? A cortina se abrindo para a sua estreia? Algum diálogo entre o tio Cláudio e Hamlet? A feiticeira Medeia viajando com os argonautas? Os dedos de Sônia passeando pelo piano em Valsa número 6?

Uma visita a um teatro nos surpreende com personagens que não saíram da mente de nenhum dramaturgo. É gente que existe de verdade, prováveis referências de quem escreve uma peça de teatro.

Ao rumarmos para o foyer, a moça começou a chorar. Os soluços tinham a mesma intensidade dos gestos que ela expressara instantes antes na hora das fotos em cima do palco. Eu a ouvi contando para a guia que ela estava emocionada demais, fazia teatro quando era menor, tinha o sonho de ser atriz, mas seu pai não tinha deixado. Naquele momento, o general apareceu enorme na minha frente.

Eu quase a entendia. Eu também tentei fugir de casa aos oito anos de idade. Arrumei as malas com destino à rodoviária da cidade, iria escapar para o Rio de Janeiro, eu queria ser ator, fazer Escola de Teatro Tablado, já tinha uma vaga noção de Maria Clara Machado por causa de “Pluft” e do “Cavalinho Azul”, abrira mãos dias antes da minha promissora carreira de artista de circo. A cinta do meu pai me trouxe de volta para casa, e o meu choro era de uma perda incontornável, igual ao daquela menina que chorava na minha frente quase quarenta anos depois.

Uma atriz da minha terra natal viajou para Londres para estudar inglês. Após assistir ao espetáculo Motim, ligou para o pai, comunicando que ficaria morando em Londres e desejava ser atriz. Só retornaria ao Brasil para fazer teatro. O pai autorizou.

Talvez a jovem amazonense não tivesse em suas mãos um país inteiro a barganhar com seu pai como a minha conterrânea. Eu suponho que ela não tivesse uma forte paixão para correr atrás de seu sonho, rendendo-se a todo o teste da realidade, do preconceito, do capitalismo. Talvez uma falta de autoconfiança, de ser si mesma.

A partir do primeiro soluço, as lágrimas foram companheiras da ilustre hóspede ao longo de toda a visita. Quanto mais prolongados eram os soluços, mais gigante esse general ia aparecendo para mim. Era uma capacidade.

Se há duzentos e cinquenta anos atrás, o fantasma era o pai de Hamlet, agora enfrentávamos um fantasma mais recente, o general pai da moleca. Nenhum fantasma sobrevive à luz. E se a gente jogasse mais luz nos fantasmas dela?

Estudei em colégio de freiras católicas onde aprendi que existe uma vocação, palavra que vem do latim “vocare”, significando chamado. É nesta abertura de mundo que somos apelados para o que vem ao nosso encontro e respondemos a ele. Entretanto, não se pode negar que o apoio dos pais é uma grande alavanca para que seus filhos aprimorem seus talentos. Ceará, terra de coronéis, autoritários, mas permissivos com sua prole. O que teria sido da literatura nacional se o velho coronel, pai de Rachel de Queiroz, tivesse arrancado os romances franceses das mãos da entusiasta mocinha?

Em fevereiro, meu filho completa 8 anos. Ele aguarda com grande expectativa o início das aulas de circo na nova escola. Nos anos 80, a rodoviária ficava apenas um quarteirão da minha casa no interior do Rio Grande do Sul. Em São Paulo, há poucas chances do meu pequeno filho alcançar a rodoviária do Tietê ou da Barra Funda. Se algum dia ele virar um artista, que seja uma escolha madura, construída aos poucos. A criança continua sendo o pai do homem.

Ziyad Hadi

Psiquiatra

Teatro José de Alencar

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Teatro José de Alencar

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